A vida noturna das grandes cidades está em mutação — ou, como propõe o pesquisador Victor Hermann, talvez esteja vivendo uma verdadeira “catástrofe”.
Em entrevista a O TEMPO, o autor do livro Zona Cinza, publicado pela editora Relicário, analisa as transformações culturais que vêm esvaziando a madrugada de mistério, desejo e encontro, substituindo-a por experiências cada vez mais previsíveis e filtradas pelos algoritmos.
Nesta conversa, Hermann articula reflexões sobre consumo, empatia, redes sociais e capitalismo para traçar um diagnóstico inquietante: o que está em crise não é apenas o hábito de sair à noite, mas a própria capacidade de se abrir ao outro.
ENTREVISTA
Victor Hermann, doutor em Mídias, Artes e Literatura pela UFMG e autor, pela Editora Relicário, do livro ‘Zona Cinza: A Classe Média no Meio da Catástrofe’. Pesquisa os efeitos colaterais do neoliberalismo. Para ele, a noite – enquanto território do desejo, do risco e da desordem – sempre foi um objeto de fascinação.
1. Redes sociais, maior valorização de uma rotina saudável, reflexos da pandemia, carga de trabalho excessiva… O que explica, na sua avaliação, esse fenômeno? Quais hipóteses você levanta para explicar essa derrocada da cultura notívaga?
É provável que estejamos vivendo uma catástrofe da noite, algo semelhante ao que aconteceu com o dia nas últimas décadas. Lembremos que a vida diurna dos centros urbanos esvaziou a partir de um medo generalizado da violência. Manchetes sensacionalistas, imagens repetidas de assaltos, enfim, toda uma pedagogia da insegurança empurrou os estratos médios da população para dentro dos shoppings e dos condomínios. Agora, um pânico semelhante recai sobre a noite.
Ao medo da violência física soma-se agora o medo de violência afetiva. Nas redes sociais, uma enxurrada de conteúdos sensacionalistas – em forma de memes fofinhos, tipografias coloridas, desabafos “espontâneos” ou discursos supostamente críticos – retrata o encontro com o outro como algo perigoso ou decepcionante por definição. Muitas vezes, esse temor tem base real, sobretudo para as minorias (assim como o temor da violência diurna também tinha base real). No entanto, o sensacionalismo começa quando o discurso a a desencorajar todo investimento do desejo no acaso, no desconhecido, na diferença, e a única solução possível se torna privatização e consumo.
Por trás desse medo de violência afetiva está uma disputa pelo mercado da noite entre plataformas virtuais e espaços físicos privados. O mercado oferece hoje diversas opções noturnas controláveis: maratonas de séries regadas a delivery, dates por aplicativos em ambientes instagramáveis, festas hipernichadas em que é possível avaliar de antemão quem irá e até mesmo a playlist que será tocada. Tudo pode ser pré-visto, filtrado, escolhido. Nesse cenário, o que escapa ao controle – sobretudo o outro, o que foge ao script – a a ser visto como ameaça ou com desinteresse.
Os algoritmos permitem filtrar, antecipar e organizar encontros segundo critérios de afinidade, compatibilidade ou consumo. Sair à noite, então, se limita ao gerenciamento de expectativas. Os espaços físicos tentam responder a essas exigências, mas têm menos mecanismos de controle – e, com o tempo, é natural que percam a disputa por uma noite pré-programada, sobretudo quando o concorrente virtual oferece esse controle por uma fração do preço.
Mas quanto mais previsível a noite, menos vital ela é. Seu mistério, sua força sempre esteve no encontro com a alteridade – com o outro que desconheço, ou com uma parte de mim ainda oculta. Isso só acontece quando há acaso, desvio, risco, quando topo viver uma noite aberta. Uma dose de obscuridade é essencial para que, dançando, eu vá descobrindo o outro – e a mim mesmo – com prazer.
Foi nesse contexto que propus o conceito de “noite branca”: uma noite guiada por uma expectativa de clareza total. Assim como não sabemos a hora do dia dentro de um shopping, a escuridão perde sua profundidade quando algoritmos iluminam cada detalhe da identidade e espaços privados monetizam toda experiência.
2. Há ainda algumas trincheiras que resistem a essa mudança cultural. Como você observa esses focos de resistência à derrocada da experiência da cultura na noite?
Resistir à catástrofe da noite branca a por reconquistar a escuridão – ou seja, recuperar o desejo por encontros imprevisíveis com o que nos é radicalmente diferente. Em Belo Horizonte, isso ainda resiste, de forma mais discreta, em alguns botecos de forte tradição boêmia. Embora até a boemia hoje corra o risco de ser capturada pelo instagramável, ainda há espaços onde sobretudo o samba e pagode seguem provocando fricções sociais reais.
Dois outros circuitos culturais também mantêm viva essa aposta numa noite aberta: de um lado, as batalhas de rap e os bailes funk, como os do Aglomerado da Serra; de outro, a cena techno, encampada por coletivos como Masterplano e 101Ø. As raves de Beagá são um bom exemplo dessa luta pela escuridão. Muitas não têm local fixo – uma estratégia que nasceu como resposta à pressão do mercado imobiliário, à lei do silêncio e à gentrificação. Mas os coletivos vão além. Frequentemente, divulgam o endereço só na última hora. Um gesto simples, mas suficiente para recobrir o evento com um véu de mistério – o que certamente frustra quem espera uma experiência noturna totalmente pré-programável. E mais do que isso: esse trânsito por ruínas da cidade, por zonas esquecidas pela indústria, não é apenas pano de fundo. Ele produz risco, estranhamento, abertura. É parte ativa da experiência do techno. É esse ambiente que ajuda a produzir o que a filósofa McKenzie Wark chama de xeno-euforia – um estado eufórico que nos torna receptivos à estranheza, dentro e fora de nós.
3. Por fim, acredita que possa haver uma retomada, uma revalorização da noite?
Se estamos certos em distinguir a noite da noite branca, então é preciso reconhecer que a noite branca não está em crise. Pelo contrário – festivais, festas privadas e hipernichadas seguem emitindo sua luz excessiva, onde os iguais competem narcisicamente e o dinheiro sustenta o espetáculo dos lookinhos, combos e camarotes. Quem está em crise é a noite escura – a noite do acaso, da mistura, da alteridade.
Nesse contexto, a pergunta central talvez seja: o que torna possível sentir prazer num encontro aberto com o desconhecido? A resposta, a meu ver, a pela empatia. E entendo empatia num sentido preciso. Primeiro, como a capacidade de se colocar no lugar do outro, coincidindo com o que nele há de vital. E, no plano da comunicação, como a habilidade de decodificar signos não verbais – gestos, olhares, silêncios.
Nos grandes relatos da vida noturna, é comum ouvir histórias de encontros que começam a partir do deslumbre com um gesto sem explicação. Patti Smith, por exemplo, conta que se sentiu atraída por Robert Mapplethorpe ao observar o jeito estranho como ele dormia numa rua do Brooklyn. De repente, ele acorda e sorri: assim nasceu uma amizade que marcaria profundamente a noite nova-iorquina.
O problema é que essa capacidade de empatia está se atrofiando. À medida que a vida social migra para ambientes virtuais algorítmicos, a alta velocidade do fluxo de informação nos força a emitir mensagens cada vez mais claras, rápidas e estereotipadas. A comunicação se reduz ao que é óbvio e repetitivo. O que não pode ser imediatamente esclarecido a a gerar raiva ou tédio entre os “conversantes”.
Basta observar a gramática dos usuários viciados em aplicativos de relacionamento. Já não se referem a sujeitos com nomes, mas a “um boy”, “uma mina”. Nos encontros, limitam-se a reconhecer comportamentos-padrão – “heterotop”, “tilelê”, “barbie” – e avaliam a experiência com base em níveis de interesse e protocolos de gestão de risco: “foi top”, “red flag”. É uma linguagem que se aproxima da lógica do mercado financeiro, onde tudo é tratado como ativo com tendência de alta ou queda.
Não surpreende, então, que a lua enluarada já não inspire essas pessoas ao flerte – e que a paquera entre nessa crise amplamente percebida. Sem empatia, não conseguimos processar dados não verbais que são, em essência, a fonte do charme e do erotismo. E, se o interesse se limita ao reconhecimento de padrões, como sustentar a expectativa de controle sem a mediação de um algoritmo?
Sem empatia, não há prazer em se aventurar no mistério da noite. Mas é só na escuridão que pode brilhar a pequena luz dos vagalumes da vida noturna.