Entenda o que é incel, tema abordado na série ‘Adolescência’, da Netflix
Produção lançada na última semana já foi vista mais de 24 milhões de vezes e levanta debates importantes
Policiais armados invadem a casa de uma família no início da manhã e levam preso um menino de 13 anos, acusado de cometer um assassinato. É assim que tem início a série “Adolescência”, produção da Netflix que estreou no último dia 13 e que alcançou, em cinco dias, mais de 24 milhões de exibições na plataforma. Mais do que uma trama criminal - focada no desejo de descobrir quem matou a vítima e o por quê-, a série tem chamado a atenção por discutir temáticas importantes, que incluem o bullying, a violência online e, principalmente, a cultura incel.
Cunhado nos anos 1990, o termo incel é uma abreviação de “involuntary celibates” (celibatários involuntários) e, segundo o dicionário Oxford, é utilizado para definir um membro de uma comunidade online de jovens que se consideram incapazes de atrair mulheres sexualmente, normalmente associado a visões hostis em relação a mulheres e homens sexualmente ativos.
“É um termo que acaba descrevendo pessoas que são incapazes de ter um relacionamento ou uma vida sexual, embora essas pessoas desejem isso. A maior parte dos membros desse movimento são homens que acabam culpando, odiando e discriminando as mulheres”, explica Isabel Pimenta Spínola Castro, professora de psicologia Una. Ela acrescenta ainda que o termo começou a ganhar popularidade há cerca de 30 anos, com a criação de um blog sobre o tema. “Com o tempo, o movimento avançou e o discurso de misoginia e de ódio também foi avançando e se diversificando”, afirma.
Nascida no ambiente online, a cultura incel também encontra nesse espaço - principalmente em fóruns marcados pelo anonimato - terreno fértil para se multiplicar e propagar suas ideias, que incluem uma visão carregada de ódio às mulheres - há referências a elas como “depósitos de porra”, “criaturas mais deploráveis do universo” e “vadias que só sabem dar para o pior tipo de lixo” - e falar sobre sua solidão, insegurança e sobre a frustração por não conseguirem se relacionar.
Em entrevista a O TEMPO, o analista internacional e pesquisador em segurança, inteligência e estratégia na Universidade de Glasgow, na Escócia, Felipe Simoni explicou que esses fóruns propiciam a maior parte dos encontros entre esses homens. “Graças ao anonimato e à dinamicidade desses espaços, o movimento atrai novos integrantes, desenvolve suas interações e promove seu discurso, tudo isso de forma orgânica”, diz.
Ainda, conforme o analista internacional, esses homens têm um sistema de crenças sobre o funcionamento da sociedade baseado em um padrão de beleza e nas relações sexuais e entendem que nunca vão se relacionar com ninguém por conta dessas estruturas sociais. Para os incels, homens sexualmente bem sucedidos são chamados de “Chads”, e as mulheres atraentes são chamadas de “Stacys”.
Há também mais uma teoria relacionada com essa crença - que é inclusive abordada em “Adolescência”: a 80/20, que sugere que 80% das mulheres se sentem atraídas apenas por 20% dos homens, deixando o restante sem oportunidades.
Segundo a psicanalista Carolina Nassau, pesquisadora do Núcleo de Psicanálise e Laço Social (PSILACS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a cultura dos incels revela uma crise mais ampla da masculinidade contemporânea. “Eles não são apenas homens frustrados amorosamente — eles são o sintoma de um modelo de masculinidade que foi questionado, diluído e transformado”, pontua. “Num mundo em que os papeis de gênero estão em transformação, muitos sujeitos que foram ensinados a buscar controle e performance rígidas daquilo que aprenderam como sendo ‘masculinidade’ acabam se localizando pela via do ressentimento. E o ressentimento pode ser facilmente capturado por discursos de ódio”, explica.
Não por acaso, essa subcultura também culmina em atos de violência. Um deles aconteceu em Suzano, na região Metropolitana de São Paulo, em 2019. À época, ex-alunos invadiram um colégio e mataram pelo menos oito pessoas e depois se suicidaram. Poucas horas depois do ataque, foram encontrados indícios de que os assassinos frequentavam o Dogolachan - plataforma escondida na deepweb que vem sendo utilizada por homens que têm raiva de negros, gays, transexuais, judeus e, principalmente, de mulheres.
Conforme Carolina Nassau, o que acontece, no caso dos incels, é algo mais profundo que a frustração amorosa, que sempre existiu: há uma recusa em lidar com a frustração como parte da vida. “Muitos deles foram ensinados que ‘ter sucesso com mulheres’ é parte do que define um ‘homem de verdade’”, aponta. “No caso do adolescente retratado [na série], não se sabe ao certo se ele sequer tentou se aproximar de alguém. Era muito jovem, mas acaba se identificando com esse lugar de ressentimento”, diz ela. “Sabemos que o adolescente está em busca de um lugar e, diante da falha em se identificar como sendo esse ‘pegador de sucesso’, a internet rapidamente oferece uma posição com a qual ele pode se identificar imaginariamente. O sofrimento, em vez de ser elaborado pela via do simbólico, vira ódio: contra as mulheres, contra os homens desejáveis…”, acrescenta.
O sofrimento desses jovens também é mental. É isso o que aponta uma pesquisa publicada no ano ado pela Comissão para Combater o Extremismo do governo do Reino Unido. Conforme o estudo, 1 em cada 5 incels havia pensado em suicídio todos nos dias nas últimas duas semanas. Além disso, a pesquisa também observou que os participantes tinham altos níveis de vitimização, raiva e misoginia. “Eles também reconheceram uma visão de mundo compartilhada entre os incels, que inclui a identificação de feministas como um inimigo primário”, diz a publicação.
Não por acaso, uma das descobertas consideradas chaves do estudo, indica que a resposta ao fenômeno da cultura incel está mais alinhada ao apoio à saúde mental do que intervenções antiterrorismo.
Falar sobre o tema é importante
Para a psicanalista Carolina Nassau, séries como “Adolescência” têm um papel fundamental na sociedade, já que elas trazem à luz afetos que geralmente ficam escondidos ou estigmatizados. “Ao mostrar um personagem que se aproxima do universo incel, a série não apenas denuncia o risco, mas também convida à escuta: o que leva um jovem a se identificar com esse discurso? Essas produções não têm o papel de resolver, mas sim de provocar reflexão social. Se forem acompanhadas de conversas em casa, na escola ou nos espaços clínicos, podem, sim, contribuir para prevenir a radicalização e abrir caminhos de cuidado”, acredita.
Pais que lidam com adolescentes devem ficar atentos a alguns comportamentos que podem acender o alerta, mesmo que os sinais nem sempre sejam tão evidentes. “Isolamento no quarto, especialmente com evasão de vínculos afetivos reais; discurso marcado por ódio ou desprezo por mulheres; fixação em fóruns, vídeos ou memes com teor misógino; sentimentos de inferioridade que se transformam em cinismo, raiva ou apatia”, lista Carolina. Ela destaca que os pais precisam entender que, para um jovem, ficar trancado no quarto não é necessariamente saudável e nem sempre é seguro. “O mais importante é abrir um espaço de escuta real, sem ironia e sem correção moral imediata. Às vezes, esses jovens estão pedindo, silenciosamente, que alguém os veja. O olhar e a escuta fazem toda a diferença. Em vez de tentar ‘consertar’, é preciso sustentar uma presença que diga: você pode não saber quem é agora — e está tudo bem. Mas eu estou aqui para te escutar’”.
A professora de psicologia da Una, Isabel Pimenta Spínola Castro, reforça o coro, ressaltando a importância do diálogo, e pontuando que ele precisa ser construído desde a infância. “É preciso ouvir genuinamente o que eles têm a dizer, desarmar nossos preconceitos para conseguir ouvir e entender o que eles estão compreendendo, o que estão vivendo e trabalhar a rede de apoio. Os pais precisam entrar na vida do adolescente, demonstrar interesse, saber quem é o melhor amigo, as pessoas com as quais eles convivem, que tipo de programa eles fazem”, aconselha.
A atenção é necessária, já que os adolescentes são um grupo ainda mais suscetível ao discurso pregado pelos incels. “Eles são vulneráveis a qualquer movimento social, porque ainda estão num processo de construção da personalidade e identidade, por isso precisam e necessitam de aceitação. Então, esses grupos acabam despertando nesses adolescentes com algumas fragilidades e peculiaridades um sentimento de pertencimento. Ele acaba fisgando aqueles com vulnerabilidades psiquicas”, afirma Isabel.
(*Com informações de Alex Bessas.)