A fala do governador Romeu Zema (Novo), que relativizou a ditadura militar ao classificá-la como uma “questão de interpretação”, gerou repercussão na Assembleia Legislativa de Minas Gerais na manhã desta quinta-feira (5 de junho). Durante o Assembleia Fiscaliza, parlamentares cobraram explicações do secretário de Cultura sobre o abandono do Memorial dos Direitos Humanos e acusaram o governo de desprezar políticas de memória e justiça. A declaração também foi alvo de críticas nas redes sociais e analisada como oportunismo político por especialistas.
Na quarta-feira (4 de junho), em entrevista à Folha de S.Paulo, Zema relativizou o regime militar ao afirmar: “Não foram concedidos indultos a assassinos e sequestradores aqui, durante o que eles chamam de ditadura?”. Questionado diretamente sobre o reconhecimento da ditadura, respondeu: “Acho que é tudo questão de interpretação” e alegou: “Nunca aprofundei no tema e não sou historiador”.
Imediatamente após a publicação da entrevista, parlamentares mineiros de oposição se manifestaram nas redes sociais. O deputado estadual Cristiano Silveira (PT), presidente do partido em Minas, escreveu: “Zema ou por cima de cadáveres, torturados e oprimidos na gana pelo poder a qualquer custo. Perdeu qualquer traço de dignidade e pudor”.
A deputada federal Duda Salabert (PDT) questionou: “Zema questionando a ditadura militar! Burro, mau-caráter ou a soma das sentenças?”. Já a deputada estadual Lohanna França (PV) ironizou: “A próxima é relativizar o Holocausto? Ou a escravidão, quem sabe?”.
A repercussão também chegou ao Assembleia Fiscaliza, evento da ALMG em que secretários do governo prestam contas ao Legislativo. Durante a sabatina da área da Cultura, a deputada Bella Gonçalves questionou diretamente o secretário Leônidas Oliveira:
“Zema disse que a ditadura militar era relativa, que a morte de mais de 10 mil pessoas tenha sido relativa, que a ausência de eleições diretas, censura das artes, era relativa. E essa fala converge com o abandono do patrimônio da memória e da justiça, como o Memorial dos Direitos Humanos”.
O memorial, previsto para funcionar no prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em Belo Horizonte, local usado para tortura de presos políticos durante o regime militar, segue sem data para ser inaugurado. Movimentos sociais ocuparam o local em abril e relataram ação da Polícia Militar para impedir a entrada de novos manifestantes, mesmo após decisão judicial suspendendo a reintegração de posse.
Leônidas Oliveira respondeu destacando que o prédio é tombado e está incluído no programa “Caminhos da Memória da Ditadura Militar”, desenvolvido pelo Iepha (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais). Segundo ele, o Estado “não tem recurso para restaurar os bens, mas eles estão protegidos”, e há previsão de criação de um roteiro de memória assim que o espaço for transformado no memorial.
Especialista vê oportunismo político e ataque à memória histórica
O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador em comunicação política, Camilo Aggio, afirmou que a fala de Romeu Zema relativizando a ditadura militar não encontra respaldo na produção acadêmica séria e amplamente consolidada sobre o tema.
“Não existe qualquer tipo de margem conceitual ou teórica para definir o regime que se iniciou em 1964 e foi até os anos 1980 de outra forma que não como uma ditadura. Foi um regime que torturou, matou, perseguiu. É uma ditadura. Pode até ter havido participação de civis, como em qualquer ditadura, mas foi um golpe que suprimiu liberdades e perseguiu opositores”, disse.
Na avaliação do pesquisador, declarações como a de Zema se apoiam em um movimento de revisionismo histórico que ganhou força nos últimos anos dentro da política.
“Existe um conjunto significativo de cidadãos que ainda sustentam a percepção de que a ditadura brasileira não foi aquilo tudo que dizem que ela foi. Pessoas que minimizam a repressão, as mortes e os desaparecimentos, e que acreditam em mitos como ‘naquela época não havia corrupção’ ou que ‘a criminalidade era menor’. Tudo isso é fruto de uma construção mitológica que não corresponde aos fatos nem aos registros que nós temos”, explicou.
Camilo Aggio também criticou o uso político da controvérsia. Segundo ele, a tentativa de lançar dúvida sobre um período historicamente reconhecido pode fazer parte de um cálculo eleitoral. “Há quem recorra a esse tipo de polêmica como estratégia para se manter em evidência ou para dialogar com setores específicos do eleitorado. É a tática de levantar controvérsias verborrágicas, de provocar ruído, ainda que à custa da verdade histórica.”
O professor ainda lembrou que esse tipo de negacionismo tem impactos concretos sobre políticas de memória e reparação. “É preocupante porque mina os esforços de preservação da memória democrática. Quando uma autoridade pública relativiza a ditadura, ela contribui para enfraquecer o compromisso com a verdade histórica, com a justiça de transição e com a garantia de que violações como as que ocorreram naquele período não se repitam.”