Argos, o frio e a solidão
Na longa saga de Ulisses, apenas a devoção e o amor de Argos o levam à comoção
O astuto e sábio Ulisses, depois de 20 anos consumidos na Guerra de Troia e numa longa odisseia, que ou por cantos de sereias, monstros marinhos, pela maga Circe, pelo ciclope e por inúmeras tempestades, chegou finalmente à ilha de Ítaca.
Com toda a prudência se apresentou em trapos de mendigo ao se aproximar do palácio da esposa, Penélope, assediada por aguerridos pretendentes da rainha “viúva”, já que o marido se encontrava desaparecido depois de duas décadas de ausência e de silêncio.
Ulisses, vivo como nunca, consegue se esquivar das traições e insídias, engana a todos, mesmo os seus servos e velhos amigos, que o trocam por um miserável esfomeado. Ninguém consegue imaginar que debaixo dos trapos macilentos se escondia o ainda vivo rei da ilha, ou responsável pela derrota de Troia.
Recebe até insultos e humilhações nas ruas, sem revidar.
Mas, se os homens não se apercebem do rei, um velho e decrépito cão de caça, que Ulisses criou antes de partir para a guerra, o fareja, o reconhece, abana com as últimas forças o rabo, baixa as orelhas e arregala os olhos. O fiel Argos arranca uma lágrima do herói, que enxuga rapidamente para não despertar atenção.
A longa espera de Argos se finda e com ela também a vida, que resistiu aos maus-tratos, à infestação de carrapatos, ao descaso e ao dormir numa cama de esterco de gado enquanto a lembrança continuava acesa.
Vinte anos sem esquecer o o, o cheiro, a identidade de quem lhe fez bem e lhe deu a melhor alegria. Não consegue levantar o corpo, a cabeça recua, os olhos espelham a satisfação com a visão do dono. Mergulha feliz na morte libertadora.
Na longa saga de Ulisses, apenas a devoção e o amor de Argos o levam à comoção. No capítulo XVII, na linha 290 da “Odisseia”, tem-se o testemunho deixado por Homero da relação do homem e do cão como ele a enxergava, sublime, atemporal, incontaminada, silenciosa.
Argos durou excepcionalmente por mais de 20 anos, apesar das tribulações, resistiu a tudo e a todos para rever o amado mestre. Extingue-se assim sem dor, sem rumores depois de um último sopro de incontável alegria.
Mesmo no momento da morte, os olhos de Argos não perdem a ternura, na verdade se iluminam com a presença do nunca esquecido, do melhor de todos, do amigo que povoou seus sonhos e alimentou sua saudade.
Nesse episódio, não é Ulisses um mendigo nem Argos um cão velho e sofrido; nos dois serenamente brilha a pureza da amizade, e recuperam um para o outro sua verdadeira identidade, do amigo amoroso e do fiel companheiro.
No momento de olhares que se cruzam, consagra-se uma ligação sem interesses, o milagre do amor incondicional resistente a qualquer distância e obstáculo: Ulisses deixa de ser um mendigo que proclama ser, Argos não é o cão assustador e malcheiroso, explode sem ruídos o mais terno sentimento, extingue-se a espera, chega o prêmio à persistência do esforço de viver para rever quem mais felicidade soube lhe dispensar.