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Regularização fundiária urbana: direito ou mercadoria?

Observatório das Metrópoles nas eleições: um outro futuro é possível

Por João Tonucci
Atualizado em 13 de maio de 2024 | 16:38

As recentes revelações sobre o caso Marielle colocaram as disputas por terra na cena do crime, revelando conexões cada vez mais conflituosas entre mercados imobiliários, negócios ilegais e políticas de regularização. Na medula destas conexões, encontramos a informalidade fundiária como traço estrutural da urbanização brasileira, afetando principalmente a população de baixa renda excluída do mercado formal e das políticas de habitação.

Estimativas conservadoras indicam que entre 50% a 70% dos imóveis no país apresentam alguma forma de irregularidade, incluindo a falta de registro. Isso coloca uma série de problemas aos territórios populares, como a falta de o a oportunidades e serviços, a precariedade das moradias e a insegurança de posse.

As políticas de regularização fundiária têm como objetivo formalizar as porções da cidade produzidas à margem da lei. No contexto latino-americano, essas políticas têm seguido dois paradigmas. O modelo peruano, inspirado pelo guru neoliberal Hernando de Soto e difundido pelo Banco Mundial, defende a via da titulação individual como solução. Como já documentado, os resultados da política peruana de titulação em massa foram decepcionantes. Já o paradigma da “fórmula brasileira”, consagrado na Lei n.º 11.977/2009, propunha a articulação multidimensional entre legalização, urbanização e provimento de serviços básicos, e programas de desenvolvimento local.

Lei

No entanto, a promulgação da Lei Federal n.º 13.465 em 2017 rompeu com este paradigma de regularização plena, estabelecendo um modelo focado na titulação. A nova legislação simplificou procedimentos, flexibilizou as obrigações de infraestrutura, desvinculou a regularização da política urbana, permitiu a legalização de núcleos informais de média e alta renda e abriu espaço para a iniciativa privada.

Como resultado, temos assistido à desconstrução da regularização como instrumento de cumprimento da função social da propriedade e da promoção do direito à moradia e à cidade. Este alinhamento da regularização a interesses econômicos é particularmente preocupante num contexto de aproximação entre mercados da terra, crime organizado e o Estado.

A nova lei abriu um novo mercado em todo o país, envolvendo empresas de regularização, cartórios, consultorias e instituições financeiras interessadas nos títulos de propriedade como garantia para o crédito. A nova regulação caiu ainda como uma luva para a indústria paralela de grilagem e anistia de imóveis.

Além de ótima oportunidade de lucro, as políticas de regularização têm sido adotadas por agentes públicos como verdadeira panaceia, estimuladas pelo capital político advindo da distribuição de títulos à população. Assim, tem predominado uma visão de regularização como mercadoria econômica e política, priorizando ações individuais em detrimento de políticas públicas abrangentes.

A regularização fundiária é uma conquista da sociedade, e deve ser preservada como direito social. Seu sucesso depende de políticas integradas conjugando urbanização e legalização, de modo a garantir condições de permanência das comunidades. Como diversos estudos demonstram, a ênfase na titularidade individual pode estimular mais informalidade e ampliar os riscos de expulsão pelo mercado.

O foco na regularização pode ainda desviar a atenção de políticas preventivas, como o o ao solo urbanizado e a promoção de habitação social. Sem a efetiva democratização do o à terra e à moradia nas nossas cidades, continuaremos “enxugando o gelo” das mazelas urbanas, assombrados pela generalização da informalidade e a escalada dos conflitos fundiários.

João Tonucci é professor do Cedeplar/FACE/UFMG. Pesquisador do Núcleo RMBH do Observatório das Metrópoles