Os Cabrais do Século XXI no Senado
Antes do Brasil da Coroa, sempre foi o Brasil do cocar
A luta contra o Marco Temporal ganhou novo capítulo nesta quarta-feira (10), desta vez na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde parlamentares da bancada ruralista, mais uma vez, avançaram contra os direitos já reconhecidos dos indígenas ao cederam à pressão do lobby, e aos seus próprios interesses pessoais, e tentaram levar à votação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48. Para nós, indígenas, a PEC da Morte.
A PEC 48 nada mais é do que uma resposta da bancada do agro e da mineração à derrota histórica sofrida pelos ruralistas no Supremo Tribunal Federal (STF), no ano ado, que derrubou a tese do marco temporal por nove votos a dois. No mesmo dia, foi protocolada no Senado a proposta que hoje foi levada à CCJ.
Os ataques contra os povos indígenas seguem em curso. Como definir 5 de outubro de 1988 como marco se desde 1500 éramos nós que estávamos nessas terras invadidas por Pedro Álvares Cabral? E os Cabrais do século XXI, que articulam sorrateiramente com o Senado, ou na forma de senadores donos de fazendas em áreas indígenas ou ligados à mineração, continuam de forma nefasta tentando nos roubar o direito à terra que sempre foi ocupada pelos nossos povos! Antes do Brasil da coroa, sempre foi o Brasil do cocar!
A PEC da Morte, que pretende alterar uma cláusula pétrea da nossa constituição para incluir a tese do marco temporal na carta magna, desconsidera toda a história e a ancestralidade dos povos indígenas. Se for aprovada, nossos biomas, junto com a cultura e a história de milhares de pessoas, estarão ameaçados!
É importante, sobretudo, levarmos em conta as ameaças que essa proposta de emenda à Constituição Federal pode representar aos povos originários, como a flexibilização do contato com os mais de 100 povos isolados ainda presentes no território nacional, muitos dos quais se afastaram voluntariamente da interação com outros grupos, além da abertura para a exploração comercial das terras indígenas, para agricultura, mineração e até mesmo para a partição em lotes para a reforma agrária.
Como argumento para o avanço contra o direito aos territórios indígenas, senadores alegam que o agro precisa de mais terra. É uma falácia dizer que nós indígenas somos contra a produção agrícola, mas somos contra a destruição dos biomas, o desmatamento e a derrubada de florestas que contribuem para as mudanças climáticas extremas que já estamos vivendo. Nós, os povos originários, temos direito a ocupar nossos territórios da mesma forma que, por exemplo, apenas 1% do setor privado detém 46% das terras rurais no país.
Os povos originários, que representam apenas 1% da sociedade brasileira, são os responsáveis pela preservação de mais de 80% da nossa biodiversidade, fundamental para conter as mudanças climáticas extremas, como as que vimos recentemente no Rio Grande do Sul.
Se é para falarmos de marco temporal, vamos falar sobre o marco temporal do genocídio indígena que começou em 1500, quando éramos 3 milhões em Pindorama, e se prolonga até os dias de hoje. Quando não fomos mortos pela violência dos colonizadores brancos, fomos dizimados pelas doenças que eles trouxeram para o nosso chão.
Na primeira semana de julho, o projeto de lei de minha autoria, com relatoria do deputado Chico Alencar (Psol-MG), que fixa o ano de 1500 como o marco temporal do genocídio indígena foi aprovado na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais (ovos) na Câmara dos Deputados. O PL busca vedar a “imposição” de qualquer marco temporal para fins de demarcação das terras indígenas, com o objetivo de estabelecer uma compreensão sobre os acontecimentos históricos e de definir, de maneira direta, que as demarcações poderão reconhecer a existência do Direito Territorial Originário anterior à própria existência da República Federativa do Brasil.
CÉLIA XAKRIABÁ é deputada federal (PSOL-MG)