Um grito de socorro chega a Nova York. No início deste mês, a antropóloga e indigenista fluente na língua Yanomami Ana Maria Machado, mineira que viveu quase seis anos na Amazônia e trabalha com os Yanomami há 15 anos, acompanhou um grupo de indígenas de Roraima, incluindo o xamã Davi Kopenawa, aos Estados Unidos. A viagem, programada antes de estourar a crise humanitária, teve como motivação a exposição “A Luta Yanomami” e o cumprimento de uma agenda política que denuncia o descaso contra esses povos. A exposição coloca lado a lado o trabalho de artistas Yanomami contemporâneos e o da fotógrafa suíça Claudia Andujar, que desde a década de 1970 denuncia os maus-tratos.
Ao retornar ao Brasil, Ana Maria conversou com O TEMPO. Para ela, o que todos veem estamos vendo agora é o resultado prático do desmonte da área de saúde e das políticas indigenistas do governo do então presidente Jair Bolsonaro, com incentivo ao garimpo ilegal e a outras práticas que prejudicam a população indígena em todo o país.
"A crise que acompanhamos hoje é o resultado do desmonte da saúde, que foi completamente sucateada e incentivo à invasão garimpeira".
Ana Maria começou a trabalhar com os Yanomami em 2007, em um projeto de educação escolar. Morou em Boa Vista, ou meses na floresta e participou da produção de cerca de 16 livros nas línguas Yanomami. “Isso era no momento em que a situação não estava tão caótica e podíamos nos dedicar a fazer livros e projetos de educação. Hoje, o momento é de, justamente, só garantir a sobrevivência deles”. A luta pela vida desses povos foi tão impactante para Ana Maria que hoje, distante de Boa Vista, conversa diariamente com eles. “Estamos sempre em contato. Não tem um dia em que eu não pense, trabalhe, fale com eles. É uma coisa que faz sentido para a minha vida”.
Qual a importância da exposição em Nova York, que ou por São Paulo, Rio, Paris, Londres e Milão?
Essa exposição abriu um novo momento do protagonismo, da luta pelos direitos dos Yanomami a partir da arte. A Claudia fez isso nos anos 1970 e foi incansável ao retratar momentos históricos, como a construção da estrada Perimetral Norte, que cortou o território Yanomami, gerou um caos social e sanitário e matou centenas deles. Entre 1986 e 1992, começou a retratar a invasão de cerca de 40 mil garimpeiros. O trabalho mostra a beleza e a força dos Yanomami, e Claudia sempre aliou isso à luta pelos direitos deles. Na exposição, está também a arte dos Yanomami contemporâneos, que assumem o papel de transformar a beleza de sua cultura em luta e denúncia à crise humanitária.
Claudia Andujar sempre teve papel essencial nessa luta.
Em 1992, a Terra Indígena Yanomami foi demarcada. É a maior terra indígena do Brasil e garante a proteção de 9 milhões de hectares de floresta que estaria preservada, se não fosse a invasão garimpeira. Muito disso foi resultado da luta de Claudia Andujar junto a Davi Kopenawa Yanomami (xamã e grande liderança), do antropólogo Bruce Albert e do missionário Carlos Zaquini. Eles trabalharam incansavelmente para que os Yanomami não fossem dizimados, na década de 1980. O mundo agora está com os olhos voltados novamente para a emergência Yanomami, que chegou a patamares inaceitáveis.
Por que chegou a esse ponto?
Esses últimos quatro anos do governo Bolsonaro foram muito sofridos para os Yanomami e para mim e todos que trabalham diretamente com os Yanomami. Estamos acompanhando essa situação há tanto tempo, tentando fazer denúncias e mais denúncias incansavelmente, e as pessoas não prestavam atenção. Havia um governo que era justamente contra, que estimulou a invasão garimpeira e nunca ouvia as denúncias. A atitude do governo Bolsonaro foi genocida, e o resultado está aí. Estamos vendo o resultado do desmonte da política indigenista e ambiental nos últimos quatro anos. As boiadas que aram. A crise que acompanhamos hoje é o resultado do desmonte da saúde, que foi completamente sucateada e incentivo à invasão garimpeira.
A mobilização atual foi impulsionada pela reportagem do portal Sumaúma, da qual você participou. É uma união de esforços?
Quando lançamos a matéria, em 20 de janeiro, no dia seguinte o presidente Lula esteve em Roraima para, justamente, ver essa situação de fome e desmonte da saúde. Em 15 ou 20 dias, a situação virou. Com isso, a exposição em Nova York, neste momento, está sendo mais uma forma de ampliar a visibilidade, de ampliar o grito Yanomami de socorro para que salvem a vida deles. Davi Kopenawa e outros puderam falar nas universidades, com autoridades, incluindo o secretário geral da ONU, António Guterres, que visitou a exposição.
Como a grande metrópole mundial enxergou esse momento?
Houve convites da Universidade de Columbia e da Princeton University, para que Davi Kopenawa Yanomami – xamã, liderança, porta-voz e presidente da Hutukara Associação Yanomami – pudesse falar. Está tendo repercussão, “Washington Post”, CNN. O mundo se volta para essa situação catastrófica.
Foi possível enxergar ajuda?
Vai haver ajudas financeiras para fortalecer a causa. Tem coisas irrecuperáveis, territórios e vidas que não voltam, muito menos a das 538 crianças que morreram por doenças evitáveis nos últimos quatro anos. Mas as pessoas estão sensíveis ao que está acontecendo.
O que é necessário?
Projetos e questões mais sólidas. Não adianta tirar os garimpeiros e depois não monitorar. Eles voltam. Tem que haver projetos de vigilância territorial, de recuperação ambiental. Contamos com apoio internacional porque só o governo brasileiro, sozinho, não vai dar conta. A Amazônia é importante para o mundo. Os Yanomami a protegem há milhares de anos. O apoio da comunidade internacional é essencial para que se mantenha a floresta em pé e que se tenha futuro.
Conte um pouco da sua experiência com os Yanomami.
Trabalho com eles há 15 anos. Agradeço por esse encontro. Os Yanomami me mostram outras formas de estar no mundo que são muito inspiradoras. Tem muita beleza, mas muita tristeza. Principalmente nesses últimos quatro anos. Me sinto um pouco sob trauma. Fizemos uma reportagem com “Sumaúma” sobre violência sexual, e foi uma das coisas mais fortes que vivi. Ver que crianças, meninas que carreguei, minhas amigas, que ficavam na rede comigo, brincando, agora são abusadas pelos garimpeiros.
Qual é uma boa experiência?
Foram muitas marcantes, momentos de beleza, como estar na floresta com eles, ver como eles sabem viver dela. O Davi Kopenawa nos chama de “o povo da mercadoria”, porque nossos olhos estão voltados para o dinheiro, para as parafernálias que rodeiam nossa vida. Mas eles vivem a floresta. O conhecimento dos Yanomami sobre a floresta é belíssimo. Eles conhecem cada árvore, cada espécie, uma quantidade de coisas que se pode comer, sabem construir uma casa para 150 pessoas sem usar um prego, sabem viver em coletividade. Esse conhecimento sobre a floresta é muito especial. O xamanismo também é fascinante. Eles nos ensinam que há outras formas de existir.