Mobilização

Em 1979, Drummond pediu para que não acabassem com os Yanomami

O poeta mineiro publicou texto na Folha de S.Paulo e defendeu esses povos originários; no alerta, o escritor disse também que o sangue indígena está em todos nós

Por Alex Bessas
Publicado em 14 de fevereiro de 2023 | 23:30

O discurso de Milton Nascimento durante show realizado há mais de três décadas é apenas um exemplo de como vozes não indígenas precisaram se contrapor publicamente à violência branca dirigida a essa população. Ainda em 1979 – portanto, há 44 anos –, era Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) quem se dedicava a defender os Yanomami em um texto publicado no caderno “Ilustrada”, da “Folha de S. Paulo”.

 

Na coluna, que voltou a ser compartilhada e viralizou nas redes sociais no mês ado, quando veio à tona a dimensão da crise humanitária enfrentada pelos indígenas da etnia, o poeta e cronista chamava os brasileiros à ação em prol da instituição do Parque Indígena Yanomami em área comum ao Território de Roraima e ao Estado do Amazonas.

 

“Esta é a única maneira de salvar a comunidade social e cultural desses homens, mulheres e crianças que desde 1974 vêm sofrendo as consequências do processo de expansão econômica da Amazônia em sua parte negativa, sem se beneficiar com suas possíveis vantagens. A abertura da Perimetral Norte, BR–210, sem os necessários cuidados de saúde, levou àquela região gripe, sarampo, tuberculose, moléstias de pele e doenças venéreas”, escreveu ele na crônica “Não deixem acabar com os Yanomami”, que se inicia convidando os leitores à tomada de consciência. “Os Yanomami correm no momento um grande risco e estão precisando de você. Não é necessário voar até lá para ajudá-los. Basta, primeiro, que você tome conhecimento da existência deles, do modo de viver que lhes é peculiar, e da situação que enfrentam, sem garantias e sem possibilidade de autodefesa”, pontuou.

 

Voz ativa

 

Professor de teoria da literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Roberto Said lembra que, naquele período, Drummond se colocava como uma espécie de intelectual público. “Nas décadas de 1970 e 1980, ele já é um escritor de gigantesca popularidade, sendo muito lido não só pela elite cultural do país, como também pela classe média. Dessa forma, suas crônicas em jornais, que eram o veículo de informação mais popular em uma era pré-redes sociais, têm grande ressonância. Não foram poucas as vezes que textos dele obrigaram autoridades a vir a público prestar esclarecimentos, se posicionar. E Drummond falava ali de temas que eram sensíveis para o Estado, como a censura, a repressão e questões sociais e ecológicas”, contextualiza.

 

Roberto Said lembra também que o itabirano foi uma ativa voz contra a indústria predatória da mineração, criticando especialmente a atuação em Minas Gerais da então Companhia Vale do Rio Doce, hoje apenas Vale. Não por acaso, na mesma publicação, Drummond faz críticas à atuação da mineradora.

 

“Em 1978, é a Cia. Vale do Rio Doce, que devia ficar quieta em Itabira, Minas, cuidando de seus interesses locais, que se apresta para extrair a cassiterita (tipo de minério encontrado na região), antes explorada ilegalmente pelos garimpeiros. Anuncia-se a próxima chegada de 300 funcionários da empresa, sem que se cogite a vacinação prévia dos 3.800 Yanomami. E a Perimetral Norte vai prosseguir, fornecendo espaço à colonização. Topógrafos percorrem o território Yanomami, demarcando lotes em terras insofismavelmente pertencentes aos índios”, anotou.

 

Poeta lembra  que sangue  indígena está  em todos nós

 

À época da publicação do texto “Não deixem acabar com os Yanomami”, no jornal “Folha de S.Paulo”, várias discussões acerca do reconhecimento de um parque territorial para a etnia já estavam em curso.

 

“Tínhamos, então, posições muito parecidas com as de hoje. De um lado, havia aqueles que consideravam os Yanomami como um entrave a certo entendimento de progresso, sobretudo por inviabilizar o interesse na exploração de minério naquele território. De outro, tínhamos religiosos, principalmente ligados a uma ala progressista da Igreja Católica, antropólogos, indigenistas e figuras internacionais que defendiam a criação desse parque e que formaram uma comissão, da qual Drummond fazia parte”, detalha o professor de teoria da literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Said.

 

Sem sorte

 

O professor sinaliza que a coluna em defesa daquela população Yanomami não era um ponto fora da curva na história do poeta Carlos Drummond de Andrade. “Há, inclusive, um texto ainda mais forte em que ele volta a falar da causa indígena. É em ‘O Yanomami Sem Sorte’, texto publicado no ‘Jornal do Brasil’”, afirma Roberto Said.

 

Nesse outro texto, explica, além de voltar a dar mostras de sua consciência ecológica, é interessante como Drummond se coloca na primeira pessoa, chegando a escrever: “Vocês que vão invadir o nosso território”. O professor diz que todos os brasileiros têm sangue indígena e adverte que a questão Yanomami não está restrita a uma pequena comunidade.

 

Ele acrescenta ainda que, nos anos 1980, a etnia era a maior nação indígena com menos contato com brancos e a que preservava um número mais significativo de rituais.