Num campinho de futebol batido de terra, cercado de crianças por todos os lados, ele desce num helicóptero como autêntica celebridade, é chamado de herói e distribui presentes para a meninada. A cena, cinematográfica, postada nas redes sociais de Oruam, poderia integrar o clipe “22 Meu Vulgo”, lançado no último mês de fevereiro como parte do já conturbado álbum “Liberdade”, o primeiro da carreira do artista que acumula uma média impressionante de 13 milhões de visualizações de suas canções nas plataformas digitais.
Mas, para além dos números que comprovam o sucesso musical, o que rendeu fama nacional ao trapper, cuja alcunha artística consiste na grafia invertida de seu nome de batismo, foram polêmicas que envolvem casos de polícia e projetos de lei, numa escalada que tem colocado o músico no olho do furacão.
Batizado Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, Oruam, nascido no Rio de Janeiro há 24 anos, é filho do famoso traficante conhecido como Marcinho VP, apontado pela polícia como líder do Comando Vermelho, uma das facções que mais aterrorizam o país, e encarcerado desde 1996, após ser condenado a 36 anos de detenção por assassinatos que deixaram os corpos das vítimas esquartejados.
Quando Oruam nasceu, o pai já estava preso. Em 2024, ao participar do Lollapalooza, Oruam usou uma camisa com a foto do pai e o escrito “liberdade”. A imagem é a mesma que encarta o álbum recém-lançado, com o acréscimo da presença de outros familiares, como a esposa, os filhos e irmãos de Marcinho VP, que estampam o rosto do traficante.
Cerco
Em janeiro, a vereadora Amanda Vettorazzo, filiada ao União Brasil de São Paulo, protocolou um projeto de lei apelidado por ela mesma de “anti-Oruam”, com o intuito de proibir a contratação com recursos públicos de artistas que, segundo ela, realizam apologia ao crime e a facções. A ideia foi copiada em cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte por vereadores dos partidos Novo, PL, MDB e PSDB, e ganhou uma versão nacional com Kim Kataguiri, que, no último dia 25 de fevereiro, obteve a autorização do presidente da Câmara, Hugo Motta, para o andamento do projeto, após recolher 45 s.
Nesse meio tempo, Oruam foi preso, horas antes de seu álbum chegar ao mundo, depois de furar uma blitz de trânsito, e acabou acusado nas redes de ter provocado a detenção como “ação de marketing”. Na semana seguinte, voltou a ser detido e liberado por abrigar um foragido.
O fato é que o lançamento fez barulho e seguiu alimentando tanto a polarização entre fãs e detratores quanto a criatividade do músico. Prova disso é a faixa intitulada, justamente, “Lei Anti Oruam”, em que o trapper se aproveita com sagacidade do ataque sofrido ao rimar sobre violência e educação, sem dispensar a agressividade que marca seu estilo.
“O dia que o fuzil e a pistola/ Valer mais que um livro/ Aí tem algo errado/ Eles dão arma pra nóis, depois pergunta por que somos bandidos/ (...) Tudo na vida são fases/ Por isso, ódio nas frases/ Explica pra uma criança porque seu herói vive dentro das grades/ É que eu não era ruim, mas o mundo me fez assim”, canta Oruam, que, em 2002, foi premiado como a “Revelação do Trap”, após estourar com “Invejoso”.
Perseguição
Para a pesquisadora Maíra Neiva, que coordena o projeto de pesquisa (Sobre)Vivências Negras e atua na Frente Nacional de Mulheres do Funk, um percurso histórico é fundamental para compreender as nuances do que ela chama de “técnica racista de controle”.
Ela relembra que, no Código Penal de 1890, havia o crime de vadiagem, “direcionado aos praticantes de capoeira, batuqueiros, sambistas”. “Getúlio Vargas, ao buscar criar uma identidade brasileira ‘unificada’, que valorizasse a ‘cultural nacional’, desde que um pouco mais embranquecida, substitui, em 1940, o crime de vadiagem pela apologia ao crime no fazer artístico. O samba quase branco de Carmem Miranda, da Bossa Nova, interessavam ao Brasil não ecravista, da ‘democracia racial’, que até hoje povoa o imaginário social e justifica o apagamento negro”, analisa a estudiosa. Segundo ela, o resultado foi a criminalização de “uma das principais características da cultura afro-brasileira, que é a oralidade como um lugar da memória”.
O professor de Musicologia da UFMG e pesquisador do funk carioca, Carlos Palombini, endossa a análise e pontua que a Constituição Federal de 1988 tornou inconstitucional o pretenso delito de apologia ao crime, a partir de seu artigo 5º, que determina ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Palombini recorre ao procurador e membro do Ministério Público Federal, Alexandre Assunção e Silva, autor do livro “Liberdade de Expressão e Crimes de Opinião”, para quem a medida seria “típica de regimes autoritários”.
Outro inciso do artigo 5º proclama a “livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. “Suponhamos agora que Oruam não fizesse música e ignorássemos a inconstitucionalidade do artigo de Getúlio Vargas. Seria necessário, para enquadrá-lo, não apenas que ele fizesse o elogio do próprio pai, mas que fizesse o elogio do pai enquanto criminoso…”, destaca Palombini.
Liberdade
Na opinião de Maíra Neiva, “ao tipificar a narrativa negra como crime, Vargas buscou ‘limpar’ o negro da história do Brasil e a manutenção desse dispositivo legal tem a mesma intenção até hoje”. “Ora, quem define o que é e o que não é crime são os brancos. Sendo assim, Zumbi foi considerado criminoso. Nelson Rodrigues, Marcelo D2, Rennan da Penha do Baile da Gaiola, eles são criminosos para as pessoas negras faveladas?”, contesta.
Embora seja usual no chamado “funk proibidão” a referência ao crime organizado e também aos bondes das favelas, “grupos de amigos que são comuns em quaisquer classes sociais no Brasil”, Maíra defende que “não pode uma lei, em nenhuma circunstância, promover a estigmatização de pessoas fazendo generalizações e associações rasteiras”. Para Palombini, tais projetos são “populistas”.
“A necessidade é a de palco e de votos para a extrema-direita. Isso requer a desumanização do bandido, e humanizá-lo é exatamente o que Oruam faz, como o fazem outros artistas no funk e no trap”, pontua o pesquisador. Maíra também define a iniciativa como “performática e característica da ação política desde o advento das redes sociais”.
“O debate é raso e moralista, além de manipular o conceito de proteção de crianças e adolescentes. Com quais crianças esse projeto de lei se importa? E o meio em que as crianças vivem na favela? De miserabilidade, de violência, de racismo, de trabalho infantil naturalizado não encerra precocemente essas infâncias? O poder público não é responsável por isso? Atender as demandas da sociedade implica em mudar a realidade da sociedade e não em silenciá-la”, vaticina a pesquisadora mineira.
Barreiras
Anitta precisou de “uma década de sucesso para lançar um único álbum de funk, e isso só aconteceu ontem, em 2024”. A afirmação é da pesquisadora Maíra Neiva, integrante da Frente Nacional de Mulheres do Funk. Porém, para chegar onde chegou, Maíra aponta que Anitta teve que “higienizar as letras em português, retirar os elementos mais ‘favelados’ e cantar em espanhol e inglês”.
“Ou seja, nem ela está imune à censura do funk. Imagina o menino ou a menina da favela? Sem dinheiro? Sem amizade com Caetano Veloso?”, questiona. De acordo com o professor de Musicologia da UFMG, Carlos Palombini, “a perseguição ao funk é uma modalidade particular daquilo que, no Brasil colônia, denominava-se ‘ajuntamento de negros’”. “Ela se baseia no racismo, peça chave na manutenção dos sistemas colonial e capitalista”, assevera.
Maíra coloca mais lenha nessa fogueira. “O funk continua sendo criminalizado e não só pelo Estado. Parte significativa de movimentos sociais ditos populares, como algumas linhas do feminismo hegemônico, ainda buscam criminalizar o funk. Até outro dia, ‘feministas’ diziam que o funk fazia ‘apologia’ ao estupro”, critica.
Esse movimento acontece, segundo ela, por uma “interpretação desconectada da realidade”. “Tudo isso é sustentado pela criminalização da cultura negra para forçar seu embranquecimento, posterior transformação em mercadoria e venda por empresários brancos. O nome deste fenômeno é apropriação cultural, uma ferramenta racista…”, complementa Maíra.
Vivências
Para a funkeira Mac Júlia, uma das sensações do gênero atualmente, o projeto de lei apelidado “anti-Oruam” não a de “uma palhaçada”. “Isso é vetar nosso direito à liberdade de expressão com um gesto direcionado, preconceituoso com as favelas, a cultura negra e periférica”, dispara ela, que compara a iniciativa a uma “perseguição ideológica das ditaduras de (Getúlio) Vargas e dos militares”.
“Porque não se criminaliza a exaltação ao uso de bebidas alcoólicas e a esbórnia em outros estilos como a música sertaneja, por exemplo? Não dependo de casa de aposta nem nunca divulguei (o jogo do) Tigrinho”, provoca. A artista afirma que, se aprovado, o projeto irá “prejudicar muitas famílias”, inclusive a sua. “Sustento familiares doentes e meus filhos com a arte. Não é porque canto ‘putaria’ que eu não tenho família. Sou casada, tenho filhos. Minha música é uma narrativa na qual o povo periférico se encontra”, conta Júlia.
Contudo, ela afirma que “esse tipo de retaliação não é novidade para o povo periférico”. “Por si só já não somos aceitos, e o que indigna esse pessoal conservador que segrega a nossa cultura é que o dinheiro agora mudou de mão. A Anitta e todos nós que viemos depois estamos colocando o funk em todas as paradas, como um dos ritmos mais ouvidos do mundo. Estouramos a bolha! O funk traz alegria, diversão e liberdade para as pessoas da periferia”, destaca Mac Júlia, que também compõe trap, hip hop, R&B, MPB, samba e pagode.
A maranhense MC Mika, criada em Belo Horizonte, é prova dessas palavras. Aos 25 anos, a revelação do funk mineiro está em turnê pela Europa, onde percorre países como França, Inglaterra, Portugal e Espanha.
Lutas
“O funk é uma resposta da nossa juventude à realidade das periferias e tem um papel fundamental na construção de identidade. Sou mulher, bissexual, e, como MC, minha música é o meio mais transparente que tenho de falar sobre minhas experiências, lutas e vivências. O que eles deveriam fazer, ao invés de criminalizar, é criar políticas públicas que promovam a educação e a reflexão sobre o conteúdo da música, sem impedir a sua veiculação”, defende MC Mika, que compara a atual perseguição ao funk ao que ocorreu com o samba nos séculos XIX e início do XX.
A opinião é compartilhada pelo músico e pesquisador Rogério Skylab, irador do funk. “O funk se dá uma liberdade que a música popular brasileira nunca se deu, de ir às últimas consequências na questão da sexualidade, da violência e do corpo”, diz Skylab.
O crítico musical Pedro Alexandre Sanches constata que Oruam é “um personagem complexo, fácil de provocar antipatia”. “Imaturo, afrontoso, ostentatório, filho de um grande traficante. Será que a ostentação, associada ao fato de ser filho de quem é, já não é suficiente para bloquear qualquer possibilidade de apreciação estética por parte de quem não é negro nem periférico? Novamente, estamos falando aqui de estética ou de ideologia racista?”, reflete.
Sanches exalta o funk como “a originalíssima música eletrônica brasileira do século XXI”, mas não escapa à própria dificuldade em apreciar o trap. “Emperro no tom excessivamente depressivo das melodias e do modo de cantar, a ponto de sentir dificuldade em assimilar as letras. É incômodo, porque talvez a ideologia ajudasse aqui a entender a estética. Por que a juventude que fundiu o rap e o funk até chegar ao trap é tão desencantada, tão tristonha, tão niilista?”, indaga o crítico.
Performance
O músico Rogério Skylab, que já realizou parcerias com MC Gorila e posta frequentes elogios ao funk em suas redes sociais, afirma que, “no terreno da arte, a liberdade é irrestrita, não havendo a possibilidade de apologia ao que quer que seja”. O ponto de vista é sustentado pela “necessária diferenciação entre autor e narrador”. “Não existe essa identificação, são duas entidades distintas, parto dessa premissa”.
Skylab utiliza, como exemplo, alguns livros clássicos de Machado de Assis (1839-1908), como “Memorial de Aires” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que “o autor pode se colocar na pele de um narrador patriarcal, autoritário, assassino, criminoso”. A partir de tal análise, ele considera ser “inissível qualquer criminalização no campo artístico”.
Um caso de grande repercussão que testou a tese de Skylab foi a série de desenhos do artista plástico pernambucano Gil Vicente, intitulada “Inimigos”, de 2010, em que ele aparecia assassinando políticos como o presidente Lula e a Rainha Elizabeth II. “As pessoas se arrepiaram na época, mas aquilo é abstrato, imaginário, não é vida real”, diferencia Skylab.
A pesquisadora e professora Maíra Neiva aponta outro caráter da discussão, a partir da perspectiva publicitária e performática que, em sua visão, contaminou todo o debate público. “Existe o intuito de vincular o funk a um cantor de trap que, por sua vez, utiliza tudo isso como marketing musical e foi preso em uma blitz de trânsito para promover seu álbum, zombando de um dos mais graves problemas que assolam as periferias no Brasil, que é o encarceramento em massa”, critica Maíra.
“Nitidamente são performances. A performance política que nega que Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo e aliado da vereadora que propôs a lei ‘anti-Oruam’, buscou apoio justamente do funk paulista, através de seus empresários, e não de seus trabalhadores. E, agora, Nunes quer se apresentar como combatente do crime organizado, vinculando um trapper carioca ao funk paulistano industrial de São Paulo, e, consequentemente, ao crime organizado, devido ao parentesco de Oruam, que, por sua vez, ao mirar em um público de adolescentes de asfalto sem conexão com a realidade periférica, performa um produto que satisfaz o desejo dos meninos brancos de serem gângsteres”, complementa a estudiosa.
O pesquisador Carlos Palombini não crê nas chances de o projeto ser aprovado. “Caso o seja, deveríamos nos preocupar não apenas com Oruam e outros artistas, mas, sobretudo, conosco mesmo. Oruam é, no momento, o principal beneficiário desse circo… Eu mesmo o ouço agora”, arremata.