Karim Aïnouz conta, divertido, sobre a reação à parceria com Fábio Assunção, um dos protagonistas do filme “Motel Destino”, em cartaz a partir de hoje nos cinemas. “Karim Aïnouz e Fábio Assunção? Hããã? E eu digo: Aham. Parece que ele representa uma arte popular, que é a novela, o folhetim, ligado à Rede Globo. E eu sou tachado como autor. E não há nada disso. Ele é um ator, e eu, um diretor. A gente faz o que quiser”, enfatiza o realizador cearense em entrevista à reportagem de O TEMPO.
“É muito bonito o apelo que o Fábio Assunção tem, é uma estrela do audiovisual. E foi muito interessante na hora que esse nome veio, como uma sugestão da produtora de elenco do filme. Acho fascinante porque ele é, de fato, um grande ator. E o engraçado é que parece que ele renunciou à imagem de galã, mas nem por isso é menos interessante ou potente”, observa Aïnouz. O ator faz o dono de um motel que vê sua mulher (Nataly Rocha) se envolver com um fugitivo mais jovem (Iago Xavier).
Propositadamente, Assunção deixa o glamour dos tempos de novela para trás e assume o papel de um anti-herói beberrão, machista e estúpido. Para o cineasta, o personagem é um retrato do Brasil dos tempos atuais. “O Elias é um personagem que esteve na capa de todos os jornais nos últimos seis anos, que é esse homem desesperado por estar perdendo o poder, sem ética nenhuma, que tem que controlar tudo”, define Aïnouz.
“No ponto de vista do filme, Elias é um personagem em apagamento ali. Sabe que está sendo preterido, traído e não sendo amado. E isso o deixa louco, a ponto de matar. Hoje você vê que a maioria dos eleitores do (Donald) Trump é de pessoas frustradas, que estão com raiva, com um comportamento tóxico. Não fiquei pensando nisso enquanto estava filmando, mas é curioso como Elias se transformou em alguém completamente tóxico, mas também completamente seguro e hipócrita”, destaca.
Heraldo (Xavier) representa, segundo ele, outra geração, que foi, como ele mesmo diz a certa altura, condenada à morte antes mesmo de nascer. A insubordinação se torna o único caminho possível. “A Dayana (Nataly) é um personagem muito recorrente num país em que as mulheres estão em situação de perigo, ameaçadas pelo próprio parceiro”, salienta o realizador de filmes como “O Céu de Suely”, “Praia do Futuro” e “A Vida Invisível”, vencedor da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2019.
“Motel Destino” guarda algumas semelhanças com “Praia do Futuro” e “A Vida Invisível”, quando enfoca a relação de dois irmãos que se separam. A questão do desejo de fuga e deslocamento é outro ponto comum. Só que, no mais recente filme, ele acontece de forma interior, com o jovem capanga vivido por Iago Xavier se escondendo dentro de um labiríntico motel. “Trouxe a possibilidade de estar se deslocando dentro da cabeça do Heraldo, sem necessariamente sair do lugar”, analisa.
“Ele é meio-primo desse personagem que está procurando um lugar para viver melhor, para de fato tomar as rédeas da vida dele. Interessante essa dicotomia entre o que vai procurar a liberdade em outro lugar e essa mulher, a Dayana, que decide ficar. ‘Motel’ adentra o universo da fantasia, onde você pode fazer tudo. Isso não estava no papel, como as cenas com bichos e de alucinações. Foi um presente que o próprio motel nos deu, um espaço em que a muita gente, uma energia que é muito forte”, revela Aïnouz.
Para o cineasta, “Motel Destino” tem cara de um primeiro filme, após ele ar alguns anos fazendo produções na Alemanha, especialmente devido à falta de incentivos à cultura no governo ado. “Ele é a parte 2 da minha vida. Quando eu achava que nunca mais faria cinema no Brasil, porque as situações eram absolutamente hostis para isso, ele vem com uma força e vitalidade que tem num primeiro filme”, constata. O retorno ao país será marcado por uma espécie de trilogia, encabeçada por “Motel Destino”.
Filmes cearenses entre os melhores do ano
Ao final de 2024, não será uma surpresa ver de três a cinco títulos realizados no Ceará entre os melhores longas-metragens do ano. Coincidência ou não, trabalhos como “A Filha do Palhaço”, “Greice”, “Estranho Caminho”, já exibidos, e “Mais Pesado É o Céu” e “Motel Destino”, atualmente em cartaz, são sinônimos de ousadia, inventividade e diversidade temática.
“Não se trata de um movimento, mas do resultado de políticas públicas ao longo de muito tempo. No meu caso, só comecei a fazer cinema após a abertura de um curso (na UFC), em que fui da primeira turma”, assinala Leonardo Mouramateus, diretor de “Greice”, uma das gratas surpresas do ano. Segundo ele, o fato de tantos bons filmes estrearem juntos tem a ver com a pandemia.
“Isso fez com que os projetos fossem adiados, não só na filmagem, como também no lançamento. E tem a questão da distribuição, em que é preciso colocar uma atenção”, destaca. “Mas não gosto de pensar que se trata de algo coeso, como se fizesse parte de um grupo. Cada um está dando o seu rolê com alguns lugares que se encontram e outros que estão bastante distantes”.
Karim Aïnouz lembra que o cinema do Estado foi, por muito tempo, negligenciado. “O que aconteceu nos últimos 15 anos, diferentemente do que tínhamos antes, é que amos a ter uma formação em cinema. Fortaleza é uma cidade que tem cinco escolas de audiovisual, talvez seja a que tem mais escolas desse tipo per capita. E isso acontece por uma vontade política”, aponta.
Para ele, nada mais justo do que o circuito exibidor ter apresentado, nos últimos meses, cinco longas do Ceará. “E todos eles bons. Estamos nos preparando para isso há muito tempo. É um motivo de alegria quando você pensa que, não muito tempo atrás, você tinha apenas um curso de extensão em cinema e um filme a cada dois anos. É a celebração de uma resiliência grande do povo cearense, que está querendo fazer cinema”.