“Você já sabe que é pior que o primeiro, né?”, indaga Guel Arraes, entre risos, ao falar da continuação de “O Auto da Compadecida”, em cartaz nos cinemas e dirigida por ele e Flávia Lacerda. “Todo mundo gosta, mas diz que é pior que o primeiro”, explica, sem contestar essa opinião – até porque ele é também o realizador do filme lançado em 2000, um dos maiores sucessos da era da retomada do cinema brasileiro.
“É um outro filme, sem a pretensão ou ambição de comparar com o outro. A gente buscou outros caminhos. Claro que fizemos a partir dos personagens (criados por Ariano Suassuna e presentes no primeiro), mas é diferente, tanto em relação à história, que é original, quanto ao conceito, numa pegada mais emocionante. Mas (ouvir essas comparações) é um clássico, não tem como evitar”, observa o realizador pernambucano.
Ele ressalta que, em “O Auto 2”, há uma brincadeira sobre essa questão, quando Chicó, um dos protagonistas ao lado de João Grilo, diz que fará um folheto sobre a segunda ressurreição do amigo. “Ele vai falando o que aconteceu com João Grilo e a Rosinha (namorada de Chicó) responde que sempre vai ter gente que achará o primeiro melhor. É uma referência à segunda parte de ‘Dom Quixote’, que tem uma frase semelhante”.
Para Arraes, o longa é voltado, acima de tudo, para quem quer se divertir e emocionar, especialmente os apreciadores do cinema popular. “É um filme feito para público e é interessante observar que a gente buscou concorrer o mínimo possível com o primeiro. Claro que temos que trazer elementos do outro filme, mas num outro tom, um outro conceito de construção de roteiro”, salienta.
O cineasta só se decidiu sobre a realização da continuação quando percebeu que tinha uma boa história em mãos, assinado por ele, Adriana Falcão e João Falcão. “Primeiro fiz o roteiro e só depois me comprometi a dirigir”, lembra. Ele destaca que “não é um filme caça-níqueis, mas sim que quer reafirmar um Brasil, num momento em que a gente está perdido, sem saber que país é esse que estamos vivendo”.
“A cultura é sempre um chão para a gente pensar melhor. É o que acontece quando você vê, por exemplo, um show lindo de Caetano Veloso e Maria Bethânia. Se o filme tiver uma boa recepção, vai ter esse significado. A gente traz esses dois heróis brasileiros e vamos saber se eles são ainda esses heróis, se estão funcionando. É algo que transcende a história. Estou muito curiosa para saber (o resultado de público)”, assinala.
Ele avalia que “Ainda Estou Aqui”, que se aproxima de três milhões de espectadores, carrega essa vocação, a partir de um herói trágico, mas avalia que o cinema brasileiro precisa de uma regularidade maior. “Do ponto de vista da retomada (pós-Covid e paralisação da Ancine), precisamos de cinco filmes (desse porte) por ano, mais ou menos. Na retomada (da década de 1990) foi assim, uma sequência de filmes que foi fixando”.
O primeiro “O Auto da Compadecida” teve papel fundamental nessa época, junto com trabalhos como “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” (1995), de Carla Camurati, “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, e “Eu, Tu, Eles” (2000), de Andrucha Waddington. "Não que eu não tenha esperança de que isso aconteça (novamente), mas ainda é cedo para julgar. Pode ser uma exceção", pondera.
Sobre o uso de painéis de LED's para a confecção dos cenários (uma tecnologia que vem revolucionando o audiovisual, do ponto de vista econômico e estético, ao gerar mundos realistas feitos no computador), Arraes salienta que essa opção é uma consequência, ao escolher "fazer um filme mais fabular, enfiando mais o pé na farsa, no que a gente acha que é o tom do filme".
Para o realizador, o filme é uma mistura de cinema com teatro, em que o LED oferece um quê de ópera. "Você muda o céu, o Sol... E o LED, que é um gadget tecnológico, veio depois desta demanda, em que precisávamos de uma fotografia mais expressiva e uma trilha mais presente e que conta mais a história", explica Guel Arraes.
Ele assinala que "O Auto 1" não conta com nenhuma música, diferentemente da sequência, "que tem canções-temas, como se faz em geral, sendo três ou quatro as mais fortes". Na verdade, Arraes corrige, o que mais ajudou não foi o uso do LED, mas sim ter mais recursos investidos na produção. "É um filme muito mais caro que o outro".
O cineasta compara a Taperoá de seu filme com a Macondo concebida para a série "Cem Anos de Solidão", disponibilizada pela Netflix. 'Não vi ainda, mas a Macondo é uma cidade imaginária. A história não é realista e o universo do Ariano é bem assim. É uma Taperoá da cabeça dele, da infância. A questão é que as pessoas não estão muito acostumadas, já que 98% dos filmes são realistas".
Quando se fala do Nordeste, analisa Arraes, "talvez por uma tradição do Cinema Novo, devido a filmes como 'Vidas Secas' e 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', as pessoas acham que a região tem (que ser mostrada de forma) documental. Só que aqui é uma farsa. Então a gente resolveu enfiar o pé nesta linguagem".
Outra novidade em relação ao primeiro é a direção feita a quatro mãos, com Arraes dividindo a função com Flávia Lacerda, que foi assistente de produção no longa de 2000. "Já conhecia o trabalho dela, tendo participado de alguns filmes como produtor ou roteirista, e achei que ela iria acrescentar muito ao filme", explica.
"Temos um estilo muito parecido. Eu posso pegar uma cena que a Flávia pré-dirigiu e fazer sem problemas. Tem esse lado prático e muito bom", elogia Arraes, que praticamente nunca tinha dividido a direção em suas obras anteriores. "E como estava meio longe dos sets, também achei que ela proporcionaria uma atualizada sobre o que estava sendo feito no cinema".
Antes ficou 12 anos sem dirigir - o último tinha sido "O Bem-Amado", antes de voltar neste ano com dois longas. "Grande Sertão", baseado no livro de Guimarães Rosa, foi o primeiro. "O outro 'Auto' é um filme relativamente simples, do ponto de vista da cinematografia. Este não, já que tínhamos condições de explorar melhor a produção que a gente tinha", enfatiza.
Como "Auto 2" já ultraou a casa de um milhão de espectadores em cinco dias, pensar numa segunda continuação não é exagero. Guel Arraes solta uma risada antes de dizer que "deixará para o jovem responder daqui a 25 anos". E sugere: "Quem sabe fazê-los (João Grilo e Chicó) meninos".
Ele não tem dúvidas de que os dois personagens "são arquétipos incríveis e que conversam muito com o Brasil de hoje, como o empreendedor, o cara que se vinga, o camelô ,aquele que usa astúcia para sobreviver... Por isso continuam muito vivos, talvez mais do que nunca".
Arraes pondera que o aspecto mais difícil em "O Auto", por conta da obra de Suassuna, é que o filme tem que ser mais do que uma comédia local sobre o sertão. "Tem que abranger mais. Você pode fazer episódios engraçados de João Grilo e Chicó, mas pode ficar parecido com Mazzaropi. O 'Auto' do Ariano propõe uma transcendência", comenta.
"Há vários pontos na peça original que a gente quis manter nesse (filme). Ele pode não chegar lá, mas tem que ter essa ambição, não bastando fazer histórias engraçadas, o que é relativamente fácil de se fazer, caindo num esquema de série regional normal, que não é o caso do 'Auto da Compadecida' de Ariano", defende.