A arqueóloga Niède Guidon morreu nesta quarta-feira (4/6) aos 92 anos. Formada em história natural pela USP (Universidade de São Paulo) e doutora pela Universidade de Paris, ela virou de ponta-cabeça as pesquisas sobre a ocupação humana nas Américas.
A teoria de Clóvis, tradicionalmente aceita, afirma que o homem chegou ao continente americano durante a época em que o estreito de Bering esteve congelado, criando uma agem entre a Sibéria e o Alasca, há cerca de 13 mil anos. Teria descido desde a América do Norte até ocupar, mais tardiamente, as terras da América do Sul.
As pesquisas de Guidon, no entanto, apontam vestígios da presença humana no Piauí que datam de 60 mil anos ou mais. Ela assegurava que os indícios poderiam chegar a 105 mil anos na Serra da Capivara.
Walter Neves, um dos nomes mais respeitados da arqueologia brasileira, ou anos questionando as descobertas de Guidon. Em 2010, ele finalmente escreveu que estava 99,9% convencido da consistência delas. Observando a atitude da pesquisadora quanto às críticas que recebia, Neves disse: "A felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niède Guidon."
De acordo com a pesquisadora, os arqueólogos europeus nunca tiveram grandes questões para itir as datações que ela sugeria e sempre souberam que o trabalho desenvolvido no Piauí era sério e cuidadoso, tanto que concordaram em financiar os estudos.
Não foi fácil chegar a essas conclusões e encarar o ceticismo da comunidade científica norte-americana e mesmo dentro do Brasil. Também não foi simples chegar ao local remoto e isolado da caatinga em que se encontra o material arqueológico, no interior do Piauí. Niède não desistiu.
O legado de sua determinação vai além da mudança de paradigma nas teorias arqueológicas. Ela deixa ao país o Parque Nacional Serra da Capivara, incluído desde 1991 na lista de Patrimônio da Humanidade da Unesco, e a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade responsável pelo estudo do acervo natural e cultural do parque.
Foi em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP, que Guidon ouviu falar em um sítio com pinturas rupestres no interior do Piauí. Tentou chegar até o local dirigindo um Fusca, mas as dificuldades de o foram intransponíveis.
Ela partiu para a França no ano seguinte, fugindo da ditadura militar, e só em 1970, quando voltou ao Brasil para uma pesquisa sobre populações indígenas de Goiás, conseguiu ar pelo local para finalmente ver de perto as pinturas que não haviam saído de sua cabeça.
O que viu foi algo novo, muito diferente dos padrões conhecidos e estudados no restante do país. Niède sabia que era um achado importante. Pediu ajuda ao governo francês e organizou uma missão de pesquisa em 1973.
Daí em diante, ou a se dividir entre Paris, onde lecionava na Escola de Estudos Avançados em Ciências, e São Raimundo Nonato (a 530 km de Teresina), juntando seus alunos ses com os colegas da USP e formando grupos interdisciplinares com diversas instituições de pesquisa para estudar a região.
Os esqueletos encontrados no Piauí, assim como os encontrados em Minas Gerais na década de 1970, apresentam características morfológicas mais próximas de povos africanos e aborígenes do que de povos asiáticos.
A ideia do povoamento através do estreito de Bering é sólida, existe compatibilidade genética entre indígenas americanos e povos de etnia asiática. Mas ela não é suficiente para explicar tudo.
Outro caminho é a hipótese transoceânica, segundo a qual povos saídos da Polinésia e da Austrália teriam cruzado os oceanos, que tinham níveis mais baixos, e chegado diretamente ao litoral americano em períodos anteriores ao que se supunha.
Tudo isso sugere que a ocupação do continente americano pode não ter tido uma única origem ou via de o, tese que encontra cada vez mais espaço entre os pesquisadores. O trabalho de Niède apontou que os caminhos podem ser ainda mais antigos e desconhecidos.
Descobertas mais recentes de vestígios de 120 mil anos no Chile e de 130 mil anos na Califórnia acabaram por mostrar que a tese dela tinha fundamento. É uma história que ainda aguarda para ser totalmente decifrada e contada.
O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado pelo governo brasileiro em 1979. Niède sempre lutou contra o isolamento e o abandono do local. Acreditava que facilitar o o ao parque seria a garantia de sua preservação.
A arqueóloga esperou anos pela construção de um aeroporto que pudesse viabilizar a visitação turística, criou projetos de integração e sustentabilidade com as comunidades carentes da região, como uma fábrica de cerâmica, lutou por verbas e funcionários para manter o parque aberto e protegido das queimadas, da caça e do vandalismo.
Colecionou desafetos entre a classe política por suas constantes críticas e demandas e chegou a usar recursos pessoais para pagar salários e impostos atrasados. Catalogou 1.354 sítios arqueológicos dentro da área do parque para serem conservados e estudados, dos quais 200 podem receber visitantes.
As mudanças sociais ocasionadas pela criação do parque também não foram uma unanimidade entre os moradores do entorno. Com a desapropriação de terras, muitas comunidades que plantavam lavouras de subsistência e viviam da caça foram removidas para as cidades, tendo seu modo de vida completamente alterado.
Foi o caso dos habitantes da comunidade do Zabelê, hoje já assentados, que chegaram a mendigar pelas ruas de São Raimundo Nonato. Muitos jamais entenderam que a desapropriação era feita pelo governo federal --Niède levou a culpa pelos transtornos.
Quando lhe perguntavam sobre as dificuldades de ser mulher e tocar um trabalho tão grande no interior do Piauí, ainda na década de 1970 e em uma sociedade muito patriarcal, Niède respondia que jamais se sentiu diferente de qualquer homem e que esse tipo de coisa estaria mais na cabeça das pessoas, mas não na dela.
Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933. A ascendência sa vinha de um avô. Ela nunca se casou e não deixa filhos, tendo optado por dedicar sua vida pessoal e acadêmica aos estudos na Serra da Capivara.